Oito séculos de sandices financeiras
As velhas regras de avaliação não se aplicam mais.
Agora, tudo mudou, para sempre.
Dessa vez é diferente.
Em cada ciclo econômico, por uma razão ou outra, nós somos levados a pensar que agora, tudo mudou.
“Nosso tempo é especial”. “Agora as coisas estão muito rápidas.”
Porém o principal elemento da matriz econômica, o ser humano, segue sendo praticamente o mesmo. Há muito tempo.
Em “This Time is Different: Eight Centuries of FInancial Folly”, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff se deram a colossal tarefa de coletarem e se debruçarem em oito séculos de dados econômicos de 66 países para entender as crises financeiras que nós temos produzido.
O que é uma crise
O livro começa fazendo uma análise sobre o que é uma crise, de fato. Como existem governos com interesses políticos e bancos com interesses econômicos, a admissão de crise por parte desses agentes é um terreno movediço.
Os autores começam colocando a bola no chão e definindo o que eles considerarão crises para o estudo. Existem medidas qualitativas, como intervenção governamental em um banco, calote na dívida externa; e medidas quantitativas como grau de diluição da moeda ou inflação superior a 20% ao ano.
Eles separam as crises em:
- Calote externo, quando um país não paga sua dívida externa;
- Calote interno, quando um país não paga sua dívida interna;
- Crise de câmbio, quando a moeda do país se desvaloriza muito bruscamente em relação à moeda de referência;
- Diluição, quando um país reduz a quantidade de ouro e prata em cada unidade monetária (lembre-se: oito séculos);
- Inflação, quando um país expande sua base monetária a um ritmo maior que a geração de valor da moeda causando desvalorização e aumento de preços de bens e serviços;
- Crise bancária, quando grandes bancos de um país quebram e precisam de algum tipo de resgate.
Existem aqui dois adendos. Em primeiro lugar, dados sobre calotes internos são mais incomuns do que calotes externos. Os autores explicam que isso em si não mostra que eles são raros, e sim que além dos dados, por serem nacionais, são tratados mais secretivamente, os governos usam formas criativas para não pagar as dívidas com seu próprio povo, sem necessariamente chamar de calote.
Um exemplo foi o confisco da poupança e das reservas financeiras de 1990, que foi de fato, um calote da dívida interna do Brasil.
Em segundo lugar, os autores encontraram alguma dificuldade em vários casos, em diferenciar se um país entrou e saiu de duas crises num espaço curto de tempo, ou se foi apenas uma crise longa. Isso mostra o quão complicado é o trabalho de adotar medidas solucionadoras eficazes de fato.
Conexões
Crises normalmente estão conectadas.
Quando bancos sofrem muitos resgates e alguns vem a quebrar, isso pode causar uma crise de câmbio a depender das reservas internacionais dos bancos.
Um crise de inflação, se longínqua, pode causar no país um calote interno, já que o país teria dificuldade para emitir moeda.
Um calote interno, causa desconfiança no mercado externo, e caso o país não consiga renovar seus empréstimos em moeda estrangeira, terá que renegociar suas dívidas externas, causando um calote externo de fato.
Uma mensagem comum das autoridades é anunciar que ou a crise é exagerada, ou que é pontual, ou que é uma marolinha.
Porém, o principal elemento da economia não é a dívida externa nem o banco e sim o ser humano, que está envolto em todos os sistemas econômicos. E caso o humano, o habitante de um país ou seu credor, não tenha confiança ou boa expectativa nas estruturas econômicas do país, tomará medidas para proteger seu patrimônio, o que em si pode causar crises.
Intolerância a Dívida
Negócio sem dívida não declara falência.
País sem dívida não dá calote.
Até aí tudo bem.
Mas uma percepção controversa da pesquisa foi a de que não é necessário um nível de dívida grande para que um país precise declarar calote.
Cada país se financia num misto de impostos e dívida em ciclo contínuo. E o quão fácil é o acesso de um país a crédito, depende em grande parte da confiança que os credores possuem na capacidade deste país de pagar sua dívida. Sendo assim, cada país possui um nível de confiança que imprime nos seus credores. Esse nível depende vários fatores, entre eles, a capacidade do setor judiciário de cumprir com contratos, transparência governamental, desenvolvimento do mercado de capitais, etc.
Quando os credores perdem a confiança que um país preserva sua capacidade de pagar sua dívida, podem se recusar a emprestar, fazendo com que o país precise decretar o calote de suas dívdas.
Assim, os autores cunharam o termo Debt Intolerance, Intolerância à Dívida, para o propensão de um país – normalmente em desenvolvimento (como o Brasil) -, mesmo com um nível de dívida em relação ao PIB que seria baixo se comparado a países desenvolvidos, precisar declarar calote.
O livro traz o exemplo das Filipinas que deram calote na dívida externa com um nível de dívida pública total em 1,2 vezes acima de sua arrecadação. Para mostrar o quão pouco isso é, em 2023, de acordo com o Bureau of Treasury das Filipinas, as receitas total do governo foram de 3,8 trilhões de pesos, e a dívida total era de 14,27 trilhões de pesos. Um pouco menos do que 4 vezes maior. Isso significa que a intolerância à dívida das Filipinas caiu com o tempo.
Isso significa, na prática, que mesmo que um país mantenha sua dívida equilibrada, pode enfrentar problemas de solvência caso os fatores que influenciam na confiança que os credores possuem se deteriore.
LEI
LEI é a sigla econômica para Leading Economic Indicators. Os Indicadores Economicos Antecedentes são os sinais. No caso desse livro, os autores tentaram trazer alguns importantes indicadores antecedentes para crises. Porém, nem toda crise é igual e cada economia tem suas nuances. Eles deixam claro que como cada economia tem sua estrutura, os sinais em cada tipo de crise podem ser marginalmente diferentes, a depender do nível de interferência de cada governo e outros fatores.
Na minha percepção, os autores deixaram claro que existem 3 sinais que são muito reveladores a respeito da vulnerabilidade de um país a uma crise:
- Melhorias. Na média de todas os calotes externos que os autores mediram, o PIB de um país cresce antes de um calote externo. Períodos de crescimento de PIB incentivam crescimento ainda maior do endividamento estatal e privado. Medidas liberais, que dão mais facilidade de acesso ao mercado de capitais e ao crédito são o prenúncio de bolhas. Leis que permitem mais mobilidade de capital para câmbio são os pavios para a explosão de sérias crises de moeda e bancárias.
Essa é a pura mentalidade “Dessa vez é diferente”. Medidas de proteção permitem maior exposição a risco. Essa medidas normalmente são tomadas em épocas de “vacas gordas”, quando a legislação “segura o avanço”, “impede o país de ir para frente”. Algum tempo depos da legislação ser alterada para permitir uma maior tolerância a riscos, não coincidentemente, vêm as “vacas magras”, e o nível de alavancagem do sistema financeiro é muito maior que o esperado e o suportável. - Preços dos ativos. Principalmente o mercado imobiliário, por causa da sua natureza estática em relação aos ativos de mercado de capitais e por causa da sua inerente necessidade de crédito, é um indicador de possíveis crises. Preços que sobem ao infinito (bolhas) são um exemplo. Quando bolhas estouram, as quedas bruscas podem causar pânico e falta de liquidez no sistema financeiro. A movimentação de capital buscando proteção significa resgates, venda de ativos em massa, e movimentação de câmbio, dando margem para crises bancárias, crises internas e crises de câmbio.
Um caso curioso. Antes do estouro da bolha dos preços de ativos no Japão em 1990, por comparação de pares, o terreno onde esta situado o Palácio Imperial em Tóquio valia mais que o estado da Califórnia, um dos mais caros dos EUA. - Bancos. A saúde dos bancos de um país é o indicador da capacidade de um povo se financiar e financiar os projetos que serão o motor da economia de um país. É muito difícil termos um cenário onde bancos estão apertando o crédito, alavancados ao extremo, precisando de apoio estatal, e a situação econômica do país esteja sistematicamente sólida. Os autores ainda mostram que o estrago financeiro que um crise bancária pode causar em um país é múltiplas vezes maior que o dinheiro gasto para resgatar os bancos em crises. Isso de forma alguma dá carta branca para que o Estado financie aventuras bancárias. Mas sim, deveria manter legisladores mais conservadores ao permitir maiores liberalidades na criação de instrumentos de alavancagem bancária.
Minha Conclusão
Olhar para o nosso histórico de crises econômicos tem menos a ver com o dinheiro, finanças, ou legislação. E tem mais a ver com a nossa mente.
O trabalho de Reinhart e Rogoff deixa claro que temos uma predisposição a ficarmos valentes em períodos de bonança. Ficamos destemidos quando percebemos que temos um tempo bom pela frente, seja essa percepção racional ou não.
O aumento de salário nos permite consumir mais, novembro e dezembro podemos gastar mais, a herança que recebemos é gasta como se não tivesse sido arduamente construída.
Podemos gastar os royalties do Pré-Sal sem ter extraído uma gota de petróleo.
O problema (a solução) é que o mercado é cíclico. Nosso humor e nossa confiança vem e vai. As vacas magras vêm.
Quem aproveitou mais do que deveria na época da bonança, sofre mais do que deveria na tesmpestade?
E então as formigas trabalham e guardam. Enquanto isso, a cigarra canta e aproveita a primavera. Quando chega o inverno, a cigarra pede comida para as formigas.
Eu espero que as formigas aprendam a gostar do canto da cigarra porque algo me diz que, se depender da nossa fauna, ainda teremos muito mais que oito séculos de sandices financeiras pela frente.
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